Jacinto adentra o boteco fétido e imundo onde, bêbados, os trabalhadores braçais tentam desesperadamente justificar uma existência reles, à margem do conforto e da luxúria que a tecnologia trouxe para uns poucos sanguessugas. A aguardente diluída no sangue irriga as terminações nervosas e promove este quase-milagre (que seria de fato, não fossem os efeitos nocivos à saúde).
Os bêbados ocupam-se dos jogos de baralho ou das conversas circulares – infinitas. Outros jogam bilhar e fumam dos seus cigarros baratos e vagabundos. Gargalham alto para que possam ser ouvidos – apesar do silêncio na noite escura; lá fora. Permeia o ambiente uma fumaça densa e sinuosa.
“...Então, caracterizam os seres vivos dois sistemas que coexistem em diferentes planos: O primeiro deles é o sistema aberto que podemos chamar de estrutura. O fluxo da matéria; de energia; vibrações de baixa e de alta freqüência; quem sabe até as nossas próprias idéias, os pensamentos e as nossas sensações que fluem através do domínio do corpo; que opera num estado de regime fora do equilíbrio termodinamicamente estável. Outra coisa – o outro sistema – é aquele fechado, do padrão organizacional dos seres vivos. Este é alimentado pelas variações de fluxo, caracteriza um arranjo circulatório, onde a mudança de um dos parâmetros afeta a resposta deste ou de outro dos elementos – uma cadeia de conexões. O mais interessante é que este sistema fechado, o arranjo circulatório, é passível de reorganização e evolução para outros padrões organizacionais mais complexos – o que vai contra o princípio de entropia. Isto é, autopoiesis.” Jacinto se lembra da conversa que ouviu entre dois sujeitos cabeludos dentro do coletivo lotado; no fim do dia. Bolsas de couro penduradas nos ombros. Óculos espessos de grau nos rostos barbados. Provavelmente estudantes ou pesquisadores – destes que se ocupam dos assuntos que não dão dinheiro, e tão pouco ganham por isso. Sonhadores, idealistas ou mesmo retardados.
Sentado no banco, ao balcão da espelunca, Jacinto tem uma visão privilegiada da variedade de opções das ilusões engarrafadas nas prateleiras. Do forninho elétrico que mantém morna a temperatura das salsichas, dos ovos empanados multi-coloridos e dos nacos de torresmo. Girando em torno do eixo da cadeira, ele vê uma meia dúzia de mesas efervescentes pelas falas guturais, os gestos exageradamente rudes dos fregueses empapados de álcool e suas idéias toscas. O cheiro do ambiente é um misto daquele da nicotina queimada, dos alambiques úmidos embolorados, e do suor dos fregueses – elixir do dia inteiro de trabalho ao sol; na obra onde jamais seria permitida a entrada deles; tão logo deixassem de oferecer serventia. A mesa redonda de carteado e a outra retangular de sinuca ao fundo – com suas respectivas coberturas de feltro verde.
Jacinto observa a cena e imagina os corpos como simples pedaços de carne sujeitos aos seus próprios espasmos. Reações involuntárias à condição agressiva que a sociedade lhes impõem. “Estão agonizando”, pensa Jacinto. “Há muito já não vivem mais”.
O gordo e espalhafatoso dono da bodega vem perguntar o que é que ele quer. Que ele já está algum tempo lá fitando o infinito, que não cabe aqui neste canto de mundo.
Jacinto pega a faca de churrasco. Corta a traquéia e depois a garganta do gorducho num único golpe. De baixo para cima. O sangue jorra vermelho (não poderia ser outra a cor).
Jacinto saca dos bolsos de sua velha jaqueta preta o par de semi-automáticas Taurus 357. Rende os pinguços e segue rápido em direção à saída. Ao longo do caminho escolhe quatro felizardos, aos quais presenteia com tiros certeiros no peito, na cabeça ou na nuca. A passagem desta para uma melhor. Como de costume, por questões de segurança, e outras de suas crenças pessoais, nunca alivia o sofrimento de um número maior de almas que aquele dos dedos de uma de suas mãos.
Foge pela noite escura. Só assim é que ele pode repousar tranqüilo. Depois de consumada a atitude virtuosa. “Hoje dei a minha contribuição social”.
1 Comentário
Caros Leitores,
não concordo com a moral torta de Jacinto.
Mas, em meus contos, aprecio flertar com essa amplificação exagerada da tensão no drama humano - uma tentativa / experiência da demonstração por absurdo aplicada à disciplina da Literatura.
Será que a restrição da dignidade ( saúde, educação, moradia,... ) imposta às classes sociais menos favorecidas não é uma forma de furtar-lhes a centelha da vida? I.e., uma variante velada e homeopática da eutanásia?
Bem, ao menos foi esse o tipo de discussão, de estranhamento, que tínhamos a intenção de suscitar através desse conto ilustrado pelo Compaixão HQ.
Abraços à Todos! Jorge X
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